"Ideia de cadeia ou caixão volta com força nas periferias", diz educadora
Por Dofona, nome de batismo do candomblé de uma pedagoga que não quis se identificar, especial para o blog MULHERIAS
"Uma vez, vi um menino de quatro anos em meio a uma blitz policial. Ao ver seu pai ser enquadrado, a criança também levantou os bracinhos e se encostou na parede. Ali, compreendi que aquele menino preto, de quebrada, já era marcado pelo racismo e violência do Estado; essa instituição que sempre matou e mata o povo de sua comunidade. Essa marca, naquela criança e em todos os que vivem nas periferias, está em nosso DNA de quebrada. Até quando? Como superar? Em quem acreditar? Com o que sonhar?
Sou uma educadora nascida e criada na periferia da zona sul, num dos bairros considerados como dos mais violentos do mundo na década de 1990. De lá para cá, não foram as ações de segurança do governo que trouxeram paz mas, sim, atitudes e cooperativismo de pessoas que se uniram para pensar a quebrada a partir de suas próprias necessidades. Não tem ambiente para a leitura e literatura? A comunidade criou saraus poéticos em bares. Não tem música? Bandas passaram a se apresentar nesses mesmos saraus ou em praças ou ocupando ruas, só depois vieram os poucos centros culturais.
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Para quem vê de fora, pode ser difícil compreender que as periferias não têm pensamentos comuns a todos que ali residem. Na mesma rua onde mora a mãe que sofre ao ver seu filho sendo agredido ou preso sem provas pela polícia há uma outra mãe agradecendo que a força de segurança está presente. Muitas contradições estão postas. Porém, não podemos desumanizar o nosso olhar e deixar de questionar: quem é o responsável pela segurança pública? Qual o projeto sobre políticas culturais e sociais que nos é oferecido?
As nove mortes de Paraisópolis foram um massacre. Fechar a saída principal e estourar bombas não foi um mero acaso, a ação foi pensada. Ouvir um PM gritar 'aqui é minha área' demonstra a ação de retaliação e desmonte do direito de ir e vir. Aos familiares que perderam seus filhos e parentes fica o desespero de não saber como agir. Denunciar quem? Apontar quais culpados?
Uns dizem que os próprios jovens que omitiram onde estavam. Qual adolescente não faz isso? Um pai disse para um veículo tradicional de comunicação que mesmo que sua filha tenha mentido para onde iria, nada dá o direito de ser agredida. Foi a máxima verdade do dia, NADA daria o direito aos representantes do Estado agir daquela forma. Defendo que a responsabilização das forças de segurança deve ser registrada como violência racial, não só como um ato 'desastroso' de segurança da comunidade.
Todas e todos que estiveram presentes naquele baile ou conhecem a importância de um espaço de lazer gratuito na quebrada, além do DNA marcado pela violência policial, agora tiveram suas almas assinaladas. Morar em periferia é saber que a ordem do Estado chega com o pé na porta da sua casa. Nossos alimentos podem ser jogados nos chão a qualquer momento pela bota policial.
Aos meus olhos, a era cadeia ou caixão volta com força total nas periferias de São Paulo. Inúmeras incursões policiais estão acontecendo nas madrugadas com viaturas apagadas. Há surpresas nas vielas e becos. Aos espaços de lazer criados pelas próprias comunidades, estão a pólvora e o pânico.
Precisamos unir vozes. Não podemos continuar frios e estáticos frente às lágrimas e pedidos de socorro. É a hora de reagir. Fazer do luto a luta para que outros meninos e meninas não partam tão cedo por querer simplesmente se divertir."
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