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"Agora não é mais só Preta Livre. Existem mais encarceradas. São milhares"

Flávia Martinelli

13/10/2019 12h00

"Foi-se a chibata e implantou-se a lei/ Ambas sob a tutela das mesmas mãos/ Mãos de senhores de engenho/ 'Sinhozinho, não me toque!/ Mesmo lavando a minha alma as marcas não sairão"' (Trecho da música "Minha Carne", composta, interpretada e com direção de vídeo de Preta Ferreira)

Foram 108 dias em prisão preventiva, a sanção máxima que o suspeito de um crime pode ter antes de um julgamento, até que, na última quinta-feira, dia 10, o terceiro pedido de habeas corpus de Preta Ferreira foi concedido para que ela pudesse responder às acusações em liberdade.

Ao sair da Penitenciária Feminina de Santana, no antigo Carandiru, a publicitária, articuladora e cantora de 34 anos gritou a plenos pulmões: "Ninguém ocupa porque quer. Mas por necessidade. Sou inocente e vou provar".

Em entrevista ao blog, falou sobre a experiência de estar presa e o que fará daqui pra frente. "O Brasil é o terceiro país do mundo em número de presos. Agora não é mais Preta Livre, somos Pretas Livres. Existem outras encarceradas, são milhares". A cantora fala que acaba de acrescentar uma nova luta em sua vida: o questionamento do sistema carcerário, que ela entende como um instrumento para a continuidade do sistema escravista que privou negros e negras da liberdade.

"Só me deram mais força, eu conheci outro mundo. Outras mulheres, assim como eu, estão ali devido ao país que a gente vive: racista, machista, opressor", declarou Preta Ferreira ao sair do presídio (Foto: Reprodução)

Preta é filha de Carmen Silva, líder do Movimento Sem Teto do Centro, o MSTC, de São Paulo. Assim como mãe e filha, o educador Sidney Ferreira, irmão de Preta, também foi acusado de fazer parte de uma suposta organização criminosa e de praticar extorsão de moradores de ocupações.

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O caso chamou a atenção da opinião pública pois as prisões foram decretadas a partir de denúncias anônimas de um inquérito policial que investigava o incêndio e o desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, em maio de 2018. E aí já começa a confusão.

Estima-se que existam mais de 50 diferentes movimentos de luta por moradia em São Paulo. Todos com suas próprias características, propostas e formatos de organização. Há lideranças com história na participação das politicas públicas da cidade e outras que não se manifestam. Há ainda organizações com toda a documentação necessária e outras que ainda estão em total informalidade ou agem de má-fé.

Um pontinho verde: horta em forma de mandala da ocupação (Foto: Edouard Fraipont/reprodução Facebook)

Um ponto verde na cidade: horta em forma de mandala da ocupação Nove de Julho (Foto: Edouard Fraipont/reprodução Facebook)

O MSTC existe há 19 anos e coordena cinco ocupações e um empreendimento, o Residencial Cambridge, que concorreu e venceu edital para ser financiado pelo programa Minha Casa, Minha Vida. O movimento é formalizado, tem CNPJ, faz prestação de contas à prefeitura para participar de editais, tem estatuto e regimento interno registrados em cartório, conhecidos por todos os integrantes. As decisões são debatidas e aprovadas em assembleia. 

A Ocupação Nove de Julho, também sob gestão do MSTC, é famosa por suas atividades culturais e por eventos abertos ao público, como os almoços mensais de domingo que ocorrem há cerca de dois anos. O local também se destaca por ter entre seus apoiadores universidades, educadores, grupos de jornalistas e coletivos de artistas, arquitetos, profissionais da saúde e de sustentabilidade.

Em setembro, uma galeria de arte foi inaugurada no saguão do edifício com obras de mais de 60 artistas, entre moradores e outros de renome internacional, como o carioca premiadíssimo Nélson Felix e o paulistano Nuno Ramos.

MSTC na Bienal de Chicago

Preta na Bienal de Arquitetura de Chicago: a ocupação Nove de Julho ganhou um pavilhão na exposição e foi reconhecida como solução de moradia para o deficit urbano (Foto: Reprodução)

A Nove de Julho também acaba de ser o tema central de um pavilhão inteiro da Bienal de Arquitetura de Chicago, a maior exposição de arquitetura das Américas, nos EUA. "Fizemos um workshop na Ocupação em 2018 e notamos que se tratava de uma das experiências contemporâneas mais significativas de habitação social e reforma urbana inclusiva. Não só no Brasil, mas no mundo", manifestou-se o cocurador da Bienal.

Não por acaso, a prisão de Preta motivou um verdadeiro movimento por sua soltura que rapidamente se espalhou nas redes sociais. Com a hashtag #PretaLivre ou #LiberdadePreta, mais de 500 artistas e formadores de opinião se manifestaram em sua defesa.

Entre os nomes da lista estavam Caetano Veloso, Criolo, Mariana Aydar, Marcelo Janeci, Cleo Pires, Duda Beat, Leticia Letrux, Maria Gadú, Ana Cañas, Lua Leça, Spartakus, Mel Lisboa, Jean Wyllys, Mônica Benício, Chico César, Emicida, Bruno Gagliasso, Clara Averbuck, Maria Casadevall, Otto, Erica Malunguinho, Paulo Miklos, Preta Rara, Fioti, Karina Buhr, Bia Ferreira, Doralyce e Monique Evelle.

Carmen Silva na Cozinha da Ocupação Nove de Julho: há projeto protocolado na Prefeitura para transformar o local em moradia cultural (Foto: Reprodução)

Carmen Silva na Cozinha da Ocupação Nove de Julho: há projeto protocolado na Prefeitura para transformar o local em moradia cultural (Foto: Reprodução)

Ainda assim, lá se foram 108 dias de prisão. Entre arbitrariedades da Justiça, o preconceito e o descaso do poder público, quem defendia Preta observou um movimento de criminalização dos movimentos por moradia.

A opinião não é apenas de apoiadores e defesa, mas agora, também, da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca), rede formada por mais de 40 organizações e articulações da sociedade civil que desenvolve ações de promoção e defesa dos direitos humanos.

Em audiência pública na sede da Defensoria Pública de São Paulo, na última quarta-feira (9), Denise Carrara, coordenadora da Dhesca, adiantou parte do conteúdo que irá compor um relatório a ser entregue como denúncia de criminalização de movimentos por moradia a organismos internacionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Organização das Nações Unidas (ONU). 

Para Denise, as prisões de Preta e Sidney foram arbitrárias e se deram de forma ilegal com o único objetivo de pressionar a mãe deles, Carmen, coordenadora do MSTC. "É evidente que eles foram presos por serem filhos dela, que é uma liderança fundamental do movimento social", disse a educadora popular, com mestrado e doutorado em educação pela Universidade de São Paulo (USP).

A Dhesca também visitou ocupações, entre elas a Nove de Julho, coordenada por Carmen, e ouviu relatos de moradores sobre perseguições e criminalização. "Eles expuseram, de forma clara, a seletividade do sistema de justiça", afirmou Denise. "Constatamos o acirramento da criminalização de movimentos sociais e do desrespeito aos direitos humanos em todo o país após a eleição do presidente Jair Bolsonaro. É um momento difícil em que as pessoas, por serem pobres e negras, são vistas como inimigas do Estado Brasileiro", lamentou.

Preta sabe disso como ninguém, mas não esmaece. "Só me deram mais força, eu conheci outro mundo, [na prisão] eu conheci outras pessoas que precisam de ajuda. Eu conheci outras mulheres que, assim como eu, estão ali devido ao país em que a gente vive: racista, machista, opressor". E completa: "Enquanto eles investem em presídio, a educação está ficando pra trás. As crianças não sabem ler, não sabem escrever. Estudem, gente. Porque, quando a senzala descer, a casa grande vai surtar. Não vai prestar. Podem humilhar, podem bater, podem fazer o que quiserem, mas a gente vai se reerguer."

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Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.