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Por que devemos, sim, derrubar estátuas de racistas

Flávia Martinelli

03/07/2020 04h00

Em 7 de junho, manifestantes derrubaram e jogaram no rio Avon a estátua de Edward Colston (1636-1721), na cidade britânica de Bristol. O traficante fez fortuna transportando mais de 100 mil negros escravizados da África para as antigas colônias europeias no Caribe e nas Américas (Foto: Ben Birchall/PA Getty Images)

Com reportagem de Juliana Martins, especial para o blog MULHERIAS

Os protestos antirracistas que se espalharam pelo mundo após o assassinato do norte-americano George Floyd por um policial branco, em 25 de maio, levantaram um debate importante sobre monumentos que prestam homenagem a personagens de histórico racista e genocida. Na Europa e Estados Unidos, estátuas de traficantes de pessoas escravizadas e colonizadores assassinos foram parar no chão e até em fundo de rio pelos próprios manifestantes. 

No Brasil, com sua eterna tentativa de negação, apagamento histórico e criminalização dos movimentos negros, recentemente a Prefeitura de São Paulo mandou fazer uma cerca de proteção e a polícia chegou a fazer plantão de 24 horas para cuidar da preservação da imagem-símbolo da exaltação do Estado ao escravismo: a estátua de Manoel Borba Gato (1649 – 1718), ostentada com destaque numa praça importante da região de Santo Amaro, na zona sul da capital. 

Em São Paulo, no dia 11 de junho, monumento ao bandeirante Borba Gato ganhou cercadinho de proteção e vigilância policial. Na foto, à esquerda, ao fundo, viatura da Guarda Civil Metropolitana faz plantão para preservar a imagem do orgulhoso estuprador e assassino de negros e indígenas (Fotos: Júlio César/reprodução Instagram)

De estética que vai além do questionável, com dez metros de altura e peso de 20 toneladas, a escultura gigante presta homenagem ao bandeirante que, em sua busca por ouro e riquezas, fazia questão de se gabar das mortes, estupros, incêndios e destruições de quilombos e aldeias indígenas inteiras que largou pelo caminho.

No dia 24 de junho, a deputada estadual Erica Maluguinho protocolou um projeto de lei que propõe que monumentos ou bustos que remetam a escravocratas ou eventos históricos ligados à prática escravagista negra ou indígena sejam retirados de vias públicas. A proposta é que esses objetos sejam direcionados a museus que contextualizem o passado sangrento brasileiro. 

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Malunguinho cita, também, o "Plano de Ação da Conferência Mundial de Durban Contra o Racismo, a Xenofobia e Intolerância", de 2001, que reiterou a importância de outras várias declarações mundiais e, mais que isso, reconheceu a falha no combate e na denúncia do racismo "especialmente pelas autoridades públicas e pelos políticos em todos os níveis", além de apontar essa omissão como "um fator de incentivo à sua perpetuação".

Vale explicar mais e mais uma vez… Documentos de comprometimento mundial com políticas públicas são mais que promessas. São acordos assinados, de natureza legislativa, que assumem que a escravidão no Brasil foi um crime contra a humanidade. Além disso, esses acordos internacionais reconhecem, depois de inúmeras discussões, que ações promovidas pelo poder público que exaltam o período escravocrata devem ser combatidas. Mas vale a pena ir além e lembrar dos "não-espaços" da escravidão no Brasil.

 

Faltam representações negras na cidade e, quando existem, podem reforçar estereótipos racistas, caso da "mãe preta" do Largo Paissandu: "Os pés enormes e a cabeça pequena reforçam ideias que estão no imaginário da sociedade brasileira." A evidência do seio à mostra também reforça que  a mulher negra tem que alimentar, cuidar, limpar e gerir uma sociedade embranquecida que não a valoriza e a estereotipa", diz o coletivo Cartografia Negra (Foto: Assembleia Legislativa)

A arquiteta e urbanista Kaísa Isabel Santos, de 40 anos, lembra que as pessoas que definiram quais as figuras e símbolos que seriam homenageados na cidade de São Paulo vinham de uma herança cultural racista. Decidiam o que seria instalado e, também, por consequência, o que seria retirado.

"É necessário realizar uma escuta ampla com a sociedade, que deve ser feita com antropólogos, arquitetos, historiadores e, em especial, gestores públicos que estão no comando para definir o que vai ser retirado para museus ou preservado na rua. E, inclusive, trabalhar na busca de reforços da cultura e da história afro-brasileira, africana e indígena na cidade de São Paulo." 

 

A arquiteta e urbanista Kaísa Isabel Santos lembra bem: racistas colocaram os seus monumentos na cidade. E também retiraram os que não eram deles. "É preciso um amplo debate, inclusive sobre o resgate de memória" (Foto: Acervo pessoal)

O coletivo Cartografia Negra, que há dois anos realiza caminhadas educativas por pontos que representam a vivência da população negra no centro de São Paulo, concorda que faltam monumentos sobre a trajetória afro-brasileira e indígena na cidade. "E quanto existem, são questionáveis ", dizem os educadores do grupo formado pela antropóloga Raissa Albano de Oliveira, pela jornalista Carolina Piai Vieira e por Pedro Alves, que é pesquisador e poeta. 

Um exemplo de representação equivocada é a estátua conhecida como "mãe preta", que fica ao lado da Igreja do Rosário, no Largo do Paissandu, no centro da capital. "Ali há a representação da mulher negra mas de forma extremamente grotesca e disforme. Os pés enormes e a cabeça pequena reforçam ideias que estão no imaginário da sociedade brasileira." O seio à mostra sobressai. "Ou seja: demonstra que a mulher negra tem que alimentar, cuidar, limpar e gerir uma sociedade embranquecida que não a valoriza e a estereotipa", diz Raíssa, a antropóloga do Cartografia.

É importante pensar que essa imagem demonstra que as mulheres negras que cuidavam ainda cuidam dos filhos das famílias brancas muitas vezes seguem o direito de cuidar dos próprios filhos", interpreta a educadora que, nas andanças pelo centro, apresenta fatos, relatos e dados de uma história não-oficial do século XIX. Muitas representações das lutas e conquistas daquele tempo foram apagadas e hoje estão, por meio do movimento negro, em tempos de regaste.

A busca pela preservação dessas memórias passa pela necessidade da construção conjunta entre sociedade e autoridades governamentais. É o caso do "Memorial dos Aflitos", no bairro da Liberdade, que será construído depois de uma longa luta do movimento negro. O local ficará ao lado da Igreja Nossa Senhora do Aflitos, um simplório santuário, numa rua sem saída, que por pouco não some na cidade.

Raíssa, do coletivo Cartografia Negra, ao centro: andanças pela cidade para contar a história invisível da população afro-brasileira (Foto: Divulgação)

A capela foi erguida em 1775 mas antes dela já existia um cemitério, descoberto apenas 2018. O sítio arqueológico surgiu durante uma obra particular em que foram encontradas as ossadas de pessoas negras escravizadas que foram levadas à forca. Ao invés de ser imediatamente reconhecido por seu valor histórico, o local foi alvo de intensa disputa e só depois de muita pressão do movimento negro o prefeito da cidade, Bruno Covas, promulgou uma lei para oficializar a criação do Memorial dos Aflitos.

Igreja Nossa Senhora dos Aflitos, no bairro da Liberdade, em São Paulo (Foto: Arquidiocese de São Paulo)

"Ainda assim", reforça Raíssa, "existe todo um caminho institucional a ser percorrido, no qual os coletivos negros se movimentam para contar com a colaboração das autoridades." A falta de posicionamento das instituições é, no fundo, um posicionamento que visa manter as coisas como estão.

Para o advogado Flávio de Campos, que se dedica a grandes causas do movimento negro em São Paulo, a mobilização de alguns setores para perpetuar a manutenção de estátuas e figuras racistas parece ser maior do que as que defendem a recuperação ou revisão da história negra na cidade. "Retirar figuras ligadas a opressões indígenas e negras é importante para o avanço civilizatório, para sociedade demonstrar que está encarando a história com maturidade crítica."

O advogado Flávio Almeida reforça: "é preciso pressionar os gestores públicos" (Foto: Acervo pessoal)

Se vidas negras importam de verdade, Borba Gato deve ir para o campo da conscientização, nos museus em que a histórias dos genocídios devem ser contadas. E não no campo da homenagem na rua, sem contexto ou questionamento. De acordo com Flávio, a derrubada ou retirada da estátua juridicamente passa por um necessário processo político. "A mobilização deve acontecer pelo incentivo popular de abaixo-assinados e pressão popular, por meio do apoio de vereadores e deputados. São gestores públicos que decidem pela retirada dessas estátuas."

Nos Estados Unidos, a presidente da Câmara dos Representantes do país, Nancy Pelosi, exigiu que onze estátuas de confederados que se opunham ao fim da escravidão sejam removidas do Capitólio, em Washington. Na Bélgica, os bustos e diversos monumentos do Rei Leopoldo 2°(1835-1909), responsável pela cruel escravização de congoleses, estão sendo retirados dos espaços públicos por iniciativa de gestores públicos. A diplomacia belga, por sua vez, fez carta de retratação e pedido de desculpas para o Congo.

No Brasil, aguardamos. E Borba Gato que se prepare.

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.