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Visibilidade lésbica: escancarar a sapatonice é lutar por felicidade

Flávia Martinelli

28/08/2020 04h00

Com reportagem de Ariane Silva, lésbica com orgulho, especial para o blog MULHERIAS

Contra a solidão, beijo na boca no meio da rua e rolê sem medo com as amigas sapatão. É esse um resumo do desejo que une as mulheres lésbicas do Brasil inteiro amanhã, 29 de agosto, no Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. Para elas, ser visível significa existir para a sociedade, ter amigas, companheiras, não se sentir sozinha nem desamparada. Ser lésbica, para as mulheres que participam das ações que buscam explicitar sua existência, vai muito além de se relacionar com mulheres. É fazer parte de uma trajetória de vida focada nessa forma de amar. É motivo de muito orgulho.

Neste agosto, talvez suas mídias sociais tenham se enchido de lilás, cor eleita pelas lésbicas para representar o movimento das mulheres que amam mulheres. Mas é provável que, assim como em outros anos, a pauta não tenha chegado até você. Várias marcas e empresas que aproveitaram o mês de junho para ostentar a bandeira do Orgulho LGBT não fizeram postagem sobre o agosto. Aplicativos de transporte não mudaram a cor dos carros para mostrar a bandeira lésbica. E as Caminhadas Lésbicas, que já são pequenas em número e em participantes, estão em casa, obviamente, por conta da pandemia. 

Ainda assim, a luta por visibilidade continua e a importância dessa bandeira faz toda a diferença na vida de quem quer, apenas, ser feliz do jeito que é. Conheça as histórias de três mulheres lésbicas que explicam a o quanto faz diferença explicitar sua existência e seu direito ao amor, às políticas públicas, aos espaços de acolhimento e ao respeito de toda a sociedade. 

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Juntas elas são mais fortes

Foi um anúncio na finada rede social Orkut que abriu as portas do caminhão para Marcelle Fonseca, hoje aos 37 anos. A advogada mineira de Vespasiano, cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, tinha então 18 anos e ficou interessada em conhecer a sede da Associação Lésbica de Minas (ALEM), entidade que organizou a primeira Parada do Orgulho Gay em Minas Gerais, em 1997. Marcelle, ao se unir ao grupo, encontrou mulheres jovens como ela interessadas em fazer política e lutar por direitos. 

"Eu me entendi lésbica muito jovem, tinha catorze anos quando vivi uma grande paixão por uma mulher que era minha colega de escola, mas não me sentia parte da comunidade", relembra. A visita à entidade proporcionou, pela primeira vez, ter um grupo de amigas lésbicas e contato com mulheres que amam mulheres fora a própria namorada. A ALEM, associação histórica, organizou a Caminhada da Visibilidade Lésbica até seu encerramento, em 2012. Hoje o evento chama-se Caminhada de BH é organizada por outros coletivos.

"Não foi fácil a descoberta de ser lésbica. Por ser de uma cidade pequena, não tinha referências, não tinha amigas", conta Marcelle que aos 18 anos entrou em contato com a associação que passou a organizar a histórica Caminhada de BH. Ela completa 38 anos no mês que vem, mas a celebração começou um mês antes, no agosto das lésbicas (Foto: Arquivo pessoal)

Quando o jornal "chanacomchana" foi proibido

Toda mulher que ama uma mulher sabe: entender-se lésbica é se tornar herdeira de uma história apagada, que não é contada nas famílias nem nas escolas. É preciso procurar, principalmente com outras lésbicas, as histórias do passado. 

Uma delas marca o dia 19 agosto, o Dia do Orgulho Lésbico. Foi quando as militantes do Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF), em 1983, foram às ruas protestar porque o dono do Ferro's bar , um point lésbico, as proibiu de vender o jornal "Chana com Chana" no local. 

Registro protesto no Ferro's Bar em 1986 (Foto: Ovidio Vieira/Folha imagem)

Registro do protesto no Ferro's Bar em 1986 (Foto: Ovidio Vieira/Folha imagem)

Indignadas pela violência na expulsão do bar, as militantes do GALF, acompanhadas por grupos feministas e apoiadores, leram um manifesto contra a repressão e defenderam os direitos das lésbicas. Vale lembrar: o Brasil estava em plena Ditadura Militar.

O jornal Chanacomchana, lançado pelo GALF em 1981 circulou até 1987 (Reprodução)

Outra história do passado, que amanhã completa 24 anos, entrou para o calendário por conta da realização do 1º Seminário Nacional de Lésbicas, o Senale, em 1996. O evento reuniu lésbicas pela primeira vez na cidade do Rio de Janeiro e se transformou no maior encontro deliberativo de lésbicas e bissexuais do Brasil.

SENALE em 2006: questionamentos sobre os padrões culturais pré-estabelecidos e propostas de rompimento com o padrão heteronormativo socialmente aceito é o que ainda hoje pauta do Dia da Visibilidade Lésbica (Acervo Senale)

Resiliência: um lema para as vidas lésbicas

A terapeuta ocupacional Gisela Queiroz, de 56 anos, destaca o quanto  era solitário lidar com o lesbianismo antes dessas iniciativas e da internet. "Eu tinha 10 anos em 1974 e já começava a perceber algumas coisas. Eu não me enquadrava no padrão heterossexual perfeitinho com muito batom e muito frufru", como ela mesma diz. 

A primeira vez que viu o termo 'lésbica' foi em um livreto de banca de revista sobre a lesbianidade na Grécia antiga. Fora isso, a referência eram os xingamentos que recebia: "na década de 70, 80, a menina que quisesse jogar bola, soltar pipa, era mulher-macho".

Hoje ela vê que as coisas mudaram, meninas têm mais liberdade para se expressarem apesar de a luta contra estigmas permanecer. "É engraçado o que as pessoas dizem sobre ser sapatão. O que é mulher macho?", pondera. Ter opções de referências históricas e de espaços seguros para mulheres lésbicas trocarem experiências é uma maneira de lutar por visibilidade e acolhimento.

Há 6 anos, quando completou 50 de idade, Gisela montou em sua própria casa o Resiliência Espaço Cultural e Atelier. "Fiquei desempregada num episódio em que fui vítima de racismo e assédio moral. Peguei o dinheiro da indenização e montei esse lugar com a proposta de também receber a galera LGBT em momento de envelhecimento."

Na Vila da Penha, é um dos poucos espaços da capital fluminense que se propõe a reunir feministas e lésbicas de diferentes gerações. Fechado desde o início da pandemia, mantém o caráter solidário do ativismo de Gisela em uma campanha de solidariedade que distribuiu cestas básicas e presta assistência a mulheres negras, suburbanas, desempregadas, que moram sozinhas e são mais velhas.

Gisela, em primeiro plano, à dir.), dona do Resiliência Espaço Cultural e Atelier, idealizou o espaço para acolher pessoas como ela e abriu as portas da própria casa para lésbicas de diferentes gerações. Ali, ela promove encontros, atividades políticas e festas de aniversário. Com a pandemia, o espaço virou local de arrecadação de alimentos para mulheres em vulnerabilidade (Foto: Acervo pessoal)

A terapeuta ocupacional destaca a questão da saúde  das mulheres lésbicas como ponto importante em que a luta por visibilidade precisa avançar: "toda sapatão tem uma história ruim com médico ginecologista", afirma. "Acho que nos envolvemos com várias causas, mas temos dificuldades para avançar na conquistas de direitos para nós mesmas. Ainda falta uma política pública exclusiva ou que oriente médicos a atender uma sapatão. Todo ano a gente precisa conversar em agosto sobre isso, todo ano a gente começa do zero", reflete.

"A visibilidade entre nós já é uma vitória"

Para Ingrid May, de 26 anos, as ações de visibilidade lésbica ainda ficam restritas à própria comunidade, não conseguem despertar nem mesmo o interesse dos LGBT como um todo. Mas lésbicas visíveis para as próprias lésbicas já é uma vitória.

"O mês de agosto coloca em evidência não só padrões. Nas redes vi lésbicas idosas, lésbicas gordas, artistas, cantoras, mulheres negras, brancas, amarelas, indígenas", conta a jovem que cresceu em uma comunidade tradicional japonesa de uma pequena cidade pequena do interior do Paraná. Hoje ela mora em São Paulo e faz parte do coletivo que organiza a QG Feminista, revista independente online que nesse mês contou com programação montada pelas lésbicas e conteúdo especial. 

Ser lésbica estava longe de ser uma possibilidade para Ingrid. "Fui criada para achar um namorado, ter um bom marido japonês", relembra. Ela explica que para quem faz parte de comunidades orientais relacionar-se com pessoas de fora ainda hoje é um tabu. Demonstrar afeto homossexual em público, então, é considerado algo que "mancha o nome da família" (Foto: Acervo pessoal)

O percurso não foi fácil. "Sempre me envolvi com mulheres, então, pra mim, isso era normal. Só que, ao mesmo tempo, o fato de eu não contar para ninguém era uma coisa que eu sabia que não era certo", revela. "Eu me envolvia entre amigas e não via uma possibilidade de um relacionamento, sabe?"

Foi só na época da faculdade que ela mudou de comportamento, quando se mudou para a capital paulista. Ingrid conheceu outras mulheres, professoras e colegas que viviam abertamente como lésbicas. "Antes disso, nunca era uma opção ser lésbica, eu sempre pensava que ah, eu tenho que ter pelo menos um marido de fachada", reconhece.

A comemoração da visibilidade lésbica neste sábado é especial para ela por lembrar dessa trajetória, compartilhada por tantas mulheres. "É dia e mês pra gente pensar em políticas públicas, nas violências que a gente sofre simplesmente por existirmos e lembrar de toda a nossa história e da luta que houve pra chegarmos até aqui."

PARA SEGUIR NA CAMINHADA:

Por conta da pandemia, os atos de visibilidade lésbica estão acontecendo nas redes sociais. Hoje, a Marcha Mundial das Mulheres, a partir das 18hs, vai transmitir ao vivo em suas páginas do facebook e YouTube debates com a presença de lésbicas marchantes de várias partes do Brasil. As conversas terão como tema as lutas das mulheres lésbicas, feministas, anticapitalistas e antirracistas para combater a política de morte, o conservadorismo e o neoliberalismo. Além do bate-papo, a live contará com intervenções artísticas.

Amanhã, sábado, há programação pelo facebook da Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo e da Caminhada das Lésbicas e Bissexuais de BH, além de outras. Basta dar a busca! Mulheres lésbicas estarão em todas as redes!

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.